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"Desafios"

"A verdadeira medida de um homem não é como ele se comporta em momentos de conforto e convivência, mas como ele se mantém em tempos de controvérsia e desafios"

Martin Luther Kink Jr

sexta-feira, 10 de maio de 2013


O soldado do cangaço
Carlos Bahia & João Telles

Jesuíno era um soldado do exército brasileiro que participou da guerra de Canudos e que acabou sendo preso por Antônio Conselheiro. Depois de dois anos como prisioneiro, ele se rendeu à causa de Conselheiro e entrou em sua guerra. Aprendeu diversas táticas de guerrilha e batalha antes de se tornar comunista. Espiando o sol, que no sertão nordestino tirava a água das plantas quase mortas, Jesuíno ia caminhando pela caatinga procurando uma gota d’água ou um pedaço de carniça. A cada passada que ele dava, o seu pé ia quebrando os galhos secos no chão, e seus negros dedos afastavam as moitas do caminho, até que, de dentro do mato seco, ouviu-se um tiro de espingarda. Jesuíno pensou consigo mesmo: “Oxente, o que foi isso? Será que eu tô malucando?”. Com esse pensamento no juízo, ele foi se avizinhando do lugar do tiro. Quando sua vista alcançou o responsável pelo disparo, ele se viu testemunhando um assassinato. Lá havia um homem alto, acocorado com a espingarda na mão, e outro cabra montado em um alazão branco com a crina preta e músculos que até um cego pode ver. Encostado em uma árvore, podia-se ver o corpo de um preto descamisado e com a calça acochada e esmolambada. O atirador agora levantava-se e andava em direção ao seu companheiro no cavalo.
-Pronto, homi. Esse preto brabo não vai mais azuretar nosso juízo. Borimbora, João. – falou o cabra da espingarda para seu companheiro.
-Entocis bora, Alemão. A gente tem ainda que apagar o roteiro desse escravo.
Os dois cabras já tinham ido embora quando Jesuíno falou:
-Que diabéisso? Aquele cabra tinha que tá muito brabo pra meter chumbo num preto desse jeito.
Depois disso, Jesuíno tomou seu rumo de novo. Depois de caminhar muitas horas com sua alpercata rasgada, ele chegou a uma pequena capela feita de palha e barro e gritou com a voz morrinhenta:
-Ô de casa!
            Um homem gordo, vestido de padre com um copo de cachaça na mão, abriu a porta da igreja e falou:
-O que você quer, meu filho?
-Ô meu padre, será que vossemecê tem um tanto d’água pra mim dar?
-Desculpe, meu filho, água não tenho não! Mas tenho cachaça a boléu.
-Serve também, nhõ padre.
-Então não se avexe não. Vamo entrando.
            A igreja era bem precária por dentro. Lá havia alguns cepos espalhados para quem quisesse ver a missa, um altar no fundo com a cruz pendurada na parede, algumas velas apagadas dentro de castiçais pendurados na parede e tudo era iluminado por um buraco no teto de palha, de onde vinha a luz do sol escaldante. O padre gordo entrou em uma camarinha e trouxe dois barris grandes de cachaça.
-Vamos beber!-falou o padre.
-Obrigado, meu padre. Deus lhe pague!
-Me chame de Fabriciano, cabra.
            Depois de muito enfiarem aguardente nos gorgomilos, Jesuíno arranjou um canto para passar a noite, em cima de uma alcatifa. No dia seguinte, Jesuíno acordou pelos barulhos de gritos fora da igreja. Lá ele viu o padre Fabriciano falando aos berros com os dois cabras que Jesuíno viu antes de achar a igreja.
-Ô seu fio de rapariga, seu padre dos infernos! Vossemecê me deve dinheiro!- falou o homem chamado João.
-Tenha fé em Padim Ciço, home! O futuro a Deus pertence- falou o padre calmamente.
-Pois se vossemecê não me der o dinheiro agora, vai saber do futuro com o próprio senhor.
-Me dê mais um dia! Eu lhe imploro por mais um dia.
-Então, como garantia, eu vou botar fogo nessa sua igrejinha.
            Jesuíno saiu de trás da porta, e foi para o lado do padre e falou:
-Por favor, moço, aceite esse trocado como garantia. Deixe a igreja do padre em paz.
-E quem vossemecê é?-falou o cabra chamado Alemão.
-Eu sou coroinha do padre.
-Então amanhã nóis vem pra pegar o dinheiro. Borimbora, Alemão.
            Os dois cabras foram embora, e sumiram no meio do mato. O padre soltou um suspiro de alívio e perguntou a Jesuíno:
-De onde tirou essas moedas, home?
-Eu tava guardando para comprar um punhado de comida.
-Muito agradecido por vossemecê proteger a minha humilde igreja
-Uma mão lava a outra. Mas, seu padre, quem é aquele cabra?
-O cabra mais alto, o barbudo de cabelos ruivos e branco feito farinha é chamado como Alemão. O baixinho quase anão, careca e barbudo que nem Antônio Conselheiro, com aquele jeito brabo de ser se chama João.
-E o que lhes dão direito de robá dinheiro do sinhô?
-Eles acham que essas banda são tudo dele. Ele faz isso com todo mundo por aqui. É um ingrato por tudo que fiz por ele. Aquele preto que você viu morrer, não pagou a eles, acabou morto.
-Pois então tá. Fico muito agradecido pela cachaça e pela hospedagem, mas tenho que seguir o meu rumo.
-Vá pela sombra, meu fio.
            Jesuíno entrou no mato e em pouco tempo desapareceu. Depois de muito tempo de caminhada, a lua apareceu e o sol se escondeu. Jesuíno, mesmo cansado, continuou a caminhar. Pouco tempo depois, ele se viu num pedaço de terra grande com uma enorme plantação de mandioca do tamanho de um campo de futebol e tantas cabeças de gado que a vista não alcançava o final. No meio de tudo isso havia um casarão onde se podia ver dois homens sentados em redes. Quando Jesuíno apertou mais as vistas, conseguiu ver que os dois homens se tratavam dos cabras que tinha visto mais cedo. Um sentimento de raiva subiu ao juízo de Jesuíno, que tirou o facão da bainha, e foi se avizinhando do copiar onde os cabras estavam. Mas antes que pudesse se aproximar, dois pretos com enxadas surgiram em sua frente. Ele tentou um golpe com o facão, mas de repente sentiu um aperto no peito. Quando olhou para baixo, viu que se tratava de um tiro de espingarda que veio de Alemão no copiar. Jesuíno caiu como uma pedra e suas vistas escureceram. Depois disso, ele só sentiu um empurrão pra lá, um puxão pra cá, e quando acordou estava em uma camarinha com somente um candeeiro iluminando o quarto. Em sua frente estavam João e Alemão.
-O que estava fazendo aqui, Coroinha?- perguntou João.
-Eu... Eu... Eu vim aqui pra tirar satisfações do dinheiro do padre.
-Pois então foi aquele usurpador que te mandou aqui, não foi? Vamo falar com ele.
            Logo depois, um preto entrou com o padre Fabriciano amarrado e todo estrupiado.
-Padre... - gritou Jesuíno em tom de preocupação- O que fizeram com ele?
-Nós fomos naquela igrejinha e tocamos fogo em tudo. Há há há!!!- falou Alemão
            Em sua frente, João arrancou um facão da bainha e cortou o pescoço do padre. Jesuíno soltou um grito de raiva, balançou- se para sair da cadeira. Mas os dois cabras safados continuaram a rir. Logo depois, Jesuíno lembrou-se de uma faca atrás das calças, tirou-a e cortou as cordas, levantou-se como um raio e arremessou a faca na cabeça de Alemão, que caiu morto. Com um golpe rápido, soltou um murro na cara de João e tirou o facão da sua mão e enfiou na barriga do preto.
-O que foi isso?- sussurrou João quase cagado de medo- Tenha piedade de mim, homi!
-Mas vossemecê não teve piedade do pobre padre Fabriciano. - falou isso e cortou-lhe o pescoço. Saiu da camarinha e botou fogo em tudo.
            Após queimar a casa de João, Jesuíno passou a noite no curral daquela fazenda. Na manhã seguinte ele soltou os gados e saiu montado no alazão branco de João. Foi até a pequena capela de Fabriciano, onde teve uma surpresa. Lá ele encontrou uma família negra chorando na porta da pequena igreja. O homem, alto e forte como um boi e careca com olhos negros, notou a nova presença e se virou rapidamente berrando:
- Foi o senhor que tacou fogo na igreja do padre?
-Não. Esse daí tá caído morto em sua própria terra!
-Morto?
-Isso mermo, eu matei aquele fio de quenga!
-Mas foi o senhor João que tacou fogo aqui? Eu era escravo dele. Então me deixa me apresentar. Eu sou Fabiano. Minha muiér Ivone e meus dois fio Júnior e Vicente.
-Prazer, Jesuíno, ao seu dispor. Você tem algum pedaço de terra?
-Tenho não.
-Então a terra de João é toda sua.
-Vossemecê fala sério? Fico muito agradecido.
-Não tem de quê!
            Assim Jesuíno seguiu seu rumo se tornando depois o primeiro Lampião.

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